POR LAURA RAQUEL
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Em entrevista exclusiva ao jornal O Estado, a desembargadora federal do Trabalho – TRT 2ª Região, Silvana Abramo, reportou-se sobre o combate a erradicação do trabalho escravo, observando, por exemplo, que o Brasil ocupa a 51º lugar no ranking de países que mais tem trabalho escravo no mundo. Segundo ela, a situação nos permite reconhecer que há um grave problema, embora o Estado brasileiro tenha sido reconhecido pela OIT (Organização Internacional de Trabalho) como país mais avançado nos instrumento de combate a situação análoga de trabalho. Entretanto, segundo a magistrada, projetos em tramitação no Congresso Nacional, caso aprovados, podem gerar um retrocesso no combate à situação análogo de trabalho.
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Silvana Abramo avaliou, ainda, os problemas do sistema socioeducativo no Ceará, no qual já visitou algumas unidades, no ano passado. A magistrada esteve, no Estado, na última sexta-feira (10), onde participou de um seminário na Assembleia Legislativa, de autoria do deputado Renato Roseno (Psol). Silvana Abramo também é diretora de Cidadania e Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)..
[O ESTADO] Em que estágio está, atualmente, o trabalho escravo no Brasil? Que avanços estão sendo feitos para combatê-lo?
[DESEMBARGADORA SILVANA ABRAMO] A organização internacional Walk Free Foundation lançou, recentemente, seu relatório global, que listou 167 países que tem mais trabalho escravo no mundo. Nesta relação, o Brasil é o 51° lugar.
Ou seja, ele está no final do primeiro terço dos países que mais têm trabalho escravo. É uma posição desconfortável. Uma situação que nos faz reconhecer que há um grave problema. Aliás, em 1999, o estado brasileiro reconheceu que há trabalho escravo. Mas, temos no Brasil, um trabalho já desenvolvido desde a década de 80 de combate à situação análoga de trabalho. Entidades civis, Ministério Público, auditores ficais e uma diversidade de atores construiu no Brasil um mecanismo que, hoje, já é parâmetro internacional. O Brasil é reconhecido pela OIT (Organização Internacional de Trabalho) como país mais avançado nos instrumentos de combate ao trabalho escravo. O resultado, deste reconhecimento internacional, saiu no relatório de 2005 da OIT. O Brasil estruturou o combate no pilar muito sólido. Ou seja, com uma atuação interinstitucional e de diálogo social, com trabalhadores, empregadores e a sociedade civil.
[OE] A legislação foi eficaz para obtenção desses resultados para o Brasil? Tendo em vista que, nos últimos anos, algumas propostas foram discutidas no Congresso Nacional?
[SA] Sim. Temos resultados muito positivos. Mas, estes resultados não temos em números. O que temos de estatísticas oficial são os números dos trabalhadores resgatados, o que representa apenas uma pontinha do iceberg. Isso porque, para cada resgatado, têm centenas de trabalhadores ainda em situação análoga. É interessante que, quanto mais eficiente e ativa a fiscalização, mais resgates teremos. Então, esses números também sobem.
[OE] O que o Governo, então, precisa fazer para identificar melhor os focos de exploração de trabalhadores?
[SA] Nós temos, aqui no Brasil, o primeiro e o segundo Plano Nacional de combate ao trabalho escravo.Esses planos possuem a discriminação das ações públicas de combate, que, basicamente, se elencam em três pontos: prevenção, sanção e reparação. Em todos, há mecanismos de fiscalização. Então, temos, hoje, a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e nos estados, Comissões Estaduais para Erradicação do Trabalho Escravo – Coetraes e, em alguns municípios, temos as municipais, caso de dois ou três cidades. São conselhos de participação, onde possuem agentes do Estado e da sociedade civil, que fazem o monitoramento dessas ações.
[OE] O atendimento às vitimas do trabalho escravo tem sido feito de que forma? Há alguma chance de essas pessoas nunca mais precisarem ser submetidas a essa humilhação?
[SA] Essa é uma questão fundamental. Os últimos estudos da OIT vêm mostrando que a maior parte dos resgatados acaba voltando para o trabalho escravo. Nós temos algumas políticas públicas, como seguro desemprego, que é fornecido aos trabalhadores resgatados. Entretanto, ainda não temos um avanço mais significativo de prevenção e suporte a essas pessoas, para que não retornem.
[OE] De que forma a legislação tem influenciado no combate?
[SA] O atual artigo 149, do Código Penal, é fundamental. Ele é uma resposta a todo este movimento de combate à situação degradante de trabalho. Ele, inclusive, é mais avançado do que as convenções internacionais, porque ele discrimina quais os tipos de situação análoga de escravidão, como quando há vigilância efetiva, restrição de locomoção ou retenção de documentos e objetos pessoais do trabalhador, escravidão por dívida, além de tratar como trabalho escravo jornada exaustiva e degradante. Hoje, temos risco de retrocesso à redação deste artigo.
[OE] Por que retrocesso?
[SA] Temos em tramitação no Congresso vários projetos, que têm origem basicamente na bancada ruralista, que quer retirar o conceito de trabalho escravo a jornada exaustiva e degradante, além da retirada do aumento da pena, quando o trabalhador é criança e adolescente ou trata da questão de raça, etnia e origem. Então, é uma situação complicada. O auditor e o juiz, quando vão analisar as denúncias, levam em consideração estes parâmetros, que, para legislação, são considerados fundamentais. E as propostas querem retirar estas caracterizações.
[OE] O que a lista suja do trabalho escravo fala sobre a política brasileira?
[SA] Reflete muita coisa. Primeiro, a existência da ficha suja é uma grande conquista. Ela dá visibilidade para aqueles empregadores que já passaram por todas as instâncias e ficou caracterizado a utilização do trabalho escravo. Ela, ainda, nos dá um quadro das atividades em que mais são encontrados os casos. Além de várias leituras. Por exemplo, no Estado do Ceará, podemos observar quais atividades econômicas tiveram mais atuação de uso de trabalho análogo. Ela também dirige as políticas públicas e ajuda a coibir, pois o empregador que está na lista suja não pode receber empréstimo bancário de entidades oficiais. Esta lista pode ainda ser consultada por organismos internacionais, assim como o comércio internacional. Ou seja, ela tem muito peso.
[OE] Mudando um pouco de assunto. Hoje, o Estado do Ceará vive um momento de crise no sistema socioeducativo. A senhora, inclusive, atua também nessa área. Então, como vê a importância do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) na resolução da problemática?
[SA] O ECA é a legislação que estrutura a educação da criança e do adolescente. Ele atua não só na parte das infrações, mas da questão familiar e do trabalho. Vê a criança como objeto de ação prioritária por parte do Governo. Tenho acompanhado os problemas enfrentados pelo sistema socioeducativo. Sou conselheira suplente do Conselho da Criança e Adolescente, e, lá, recebemos a denúncia do Ceará, inclusive, participei da missão que veio ao Estado, em novembro passado, no qual visitei a unidade do Passaré e outras. Lá, pude constatar que a situação é, realmente, insustentável.
[OE] Na sua opinião, o Estado tem conseguido oferecer condições para contornar o problema nas unidades socioeducativas?
[SA] O que encontramos e vimos foi um descumprimento da lei do Sinasse???, porque as unidades de internação, pela lei, precisam dar condições de estudo e profissionalização, para que o jovem saia com uma situação melhor que entrou e possa se reintegrar ao convício social de forma digna. Este é o sentido das medidas socioeducativas. O Ceará não é o único. Infelizmente, sabemos que a crise no sistema socioeducativo é nacional. Ela tem causas sociológicas profundas. Nos contatos que tive com o Governador, senti boa vontade e preocupação com as soluções do problema. Tivemos vários momentos de diálogo e acredito que o Governo esteja querendo acertar. Só que isso não foi feito ainda. Entendo que estamos com problema econômicos, mas, ainda, que assim seja, as medidas precisam ter prioridade absoluta, porque, realmente, a situação é de falência total. Pelo menos, na cidade de Fortaleza. Portanto, as medidas precisam ser efetivas. Os equipamentos precisam ser adequados ao que a lei exige. Mas, antes de tudo, é preciso acabar com a violência e tortura nestes lugares. Acredito que, enquanto não se resolver as superlotações nas unidades e fornecimentos das necessidades básicas, não se terá solução. A qualificação dos agentes é central. Não é humanamente possível agressões diárias, e não se ter reação violenta.
[OE] Que medidas preventivas podem ser adotadas para que os jovens possam ser ressocializado?
[SA] A questão da prevenção é essencial. Do ponto de vista institucional, ao invés de afastá-lo da sociedade, é preciso trabalhar esse jovem. Um juiz, por exemplo, não vai inventar uma medida alternativa, se ele sabe que não tem assistência e acompanhamento para cumprir a penalidade. Seria a mesma coisa de dizer que está livre, sem qualquer responsabilidade. É preciso que o Estado forneça instrumentos para que sejam cumpridas medidas e penas alternativas, além de conservar políticas combate à extrema pobreza e à falta de assistência social.
[OE] Reduzir a maioridade penal é solução para violência, como se discute atualmente?
[SA] Do meu ponto de vista, não. Seria uma terrível desgraça nacional. A única coisa que aconteceria era superlotar as prisões e construir uma grande geração de pessoas que tiveram acesso à escola do crime, que é, hoje, as prisões brasileiras. Nós precisamos proteger os jovens e não jogá-los em uma situação ainda mais degradante, que irá rebaixar ainda mais a idade da criminalidade.
[OE] O que deve ser feito, então?
[SA] Basicamente, precisamos voltar os olhos para o apoio das unidades familiares, independentemente de sua constituição. Além disso, é preciso investir mais na educação. Sei que existe controvérsias, mas, pessoalmente, sou a favor da educação em tempo integral, ou uma escola que tenha estruturação do contra-horário escolar, porque sabemos que as mães precisam trabalhar e, então, o Estado precisa responder por sua parcela no cuidado das crianças e dos jovens.
Glossário
Situação análoga. Do grego αναλογία – analogia, “proporção”. Redução a condição de escravo. É o crime previsto no artigo 149 do Código Penal Brasileiro, no capítulo dos crimes contra a liberdade individual.