O cientista político Valmir Lopes diz que a população quer apenas delegar funções, ao invés de participar diretamente do universo político
Foto: natinho Rodrigues
Apesar dos dispositivos para ampliar o acesso ao Legislativo, poucas propostas de iniciativa popular são aprovadas Desde a Constituição de 1988, apenas quatro projetos de iniciativa popular tornaram-se leis federais. A última foi a "Ficha Limpa", aprovada em 2010. Nas câmaras municipais e assembleias legislativas, o fenômeno da tímida participação social se repete. Militantes de sindicatos e entidades apontam a falta de formação política da população e o pouco interesse do parlamento em democratizar essas iniciativas, enquanto cientista político alerta para a escolha da sociedade de apenas "delegar funções", seguindo o que prega a democracia representativa.
Na prática, o Congresso não dispõe de estrutura para constatar se uma proposta obedece aos pré-requisitos de um projeto de iniciativa popular. A exigência é que sejam coletadas assinaturas de, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, originárias de, pelo menos, cinco estados, e não menos de três milésimos dos eleitores de cada um deles. "Para viabilizar o trâmite imediato das propostas dessa natureza, elas têm sido acolhidas por um ou mais deputados, que passam a constar como autores", informa a Câmara Federal.
Fator relevante para que os projetos sejam subscritos por parlamentares é o apoio de instituições de representação nacional, como ocorreu com a Ficha Limpa, que fortalece a moralidade no exercício do mandato. Encabeçada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a bandeira em defesa da Ficha Limpa para políticos ganhou adesão de instituições como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Central Única dos Trabalhadores (CUT).
O advogado José Magalhães, assessor nacional da Cáritas Brasileira, ligada à CNBB, explica que a semente da Ficha Limpa foi uma Campanha da Fraternidade de 1996, que defendia o combate à compra de votos. Acrescenta que a iniciativa é considerada popular pelo número de pessoas que envolveu e a proporção que alcançou. "O fato de mobilizar a população para um fato como esse e ter recolhido mais de um milhão de assinaturas ganha força muito grande".
Na avaliação do assessor da Cáritas, a participação da população na política ainda é tímida devido a uma "democracia muito conservadora" que não privilegia instrumentos de política popular, como referendos, plebiscitos e leis populares. "Não há ainda uma cultura. Os políticos não acolhem com bom gosto, não são muito a favor da participação popular. Quanto mais analfabeto politicamente o povo é, melhor para uma dominação de certos políticos", reflete.
O secretário geral da CUT Ceará, Hélder Nogueira, diz que entidades como sindicatos e movimentos sociais tentam mobilizar a sociedade a apresentar projetos dessa natureza, mas pondera que "essa mudança não se dá do dia para a noite". "Na nossa compreensão, isso passa por um processo de formação política para enfrentar uma cultura de um Estado centralizador, vertical e burocrático", opina.
Participação política
O dirigente esclarece que a central sindical tem se preocupado em mobilizar a população, justificando que o sindicato oferece cursos e palestras aos trabalhadores sobre participação política. Hélder ressalta que a CUT tem apoiado projetos como a Ficha Limpa e atualmente está engajado na coleta de assinaturas para a aprovação da Lei da Mídia Democrática, juntamente com outras entidades.
Diferentemente da teoria de que falta uma cultura política mais significativa no Brasil, o cientista política Valmir Lopes, professor da Universidade Federal do Ceará, aposta que, mesmo com os mecanismos disponíveis, os eleitores acomodaram-se com o modelo de democracia representativa, que difere da democracia direta ou participativa. "Esta concepção de participação (direta) exige um cidadão 100% mobilizado. É um universo de disputa de poder. Nenhuma pessoa tolera uma permanência nesse universo", afirma.
O especialista ressalta que, para a maioria da sociedade, torna-se inviável a "profissionalização da política", mesmo considerando relevante o debate sobre as pautas que atendem à coletividade. "A cidadania não quer essa participação na esfera pública. Ela entende que as questões públicas têm que ser decididas, mas (as pessoas) também entendem que têm outras coisas para fazer". E completa: "A esquerda diz que a política está em tudo, mas não está".
A pouca ou nenhuma participação direta da sociedade no legislativo não é exclusividade da Câmara Federal. A Assembleia Legislativa do Ceará nunca aprovou um projeto de iniciativa popular, conforme o Departamento Legislativo da Casa. Para facilitar a proposição de matérias oriundas da sociedade, o legislativo cearense criou o projeto de iniciativa compartilhada, assinado conjuntamente pelas entidades propositoras e Mesa Diretora. Porém, desde 2003, quando foi regulamentada essa proposta, só um projeto foi aprovado. Votada em 2006, a matéria institui o Código de Direitos, Garantias e Obrigações do Contribuinte do Estado do Ceará.
Mobilização
Para Rodrigo Medeiros, integrante da Rede Nacional dos Advogados Populares, uma parte da sociedade civil até tenta participar, mas não encontra resposta das casas legislativas. Ele exemplifica o que ocorreu em 2007, durante a atualização da Constituição Estadual. "Fizemos uma mobilização com outras organizações da sociedade civil, com sugestões de emendas, debates na Assembleia, mas não teve retorno da própria Casa nesse processo. O parlamento não considerou boa parte das propostas da sociedade civil", destaca.
O advogado reconhece que uma parcela significativa da sociedade não se sente atraída a aproximar-se da política, principalmente pela falta de identificação com as bancadas parlamentares. "Além de mecanismos que facilitem essa manifestação, isso é reflexo da crise de representatividade do legislativo, que não está conseguindo traduzir as aspirações da sociedade", analisa.
A Câmara Municipal de Fortaleza também não aprovou nenhuma lei de iniciativa popular desde que o mecanismo foi oficializado, em 2001. O que mais se aproxima de matéria dessa natureza foi um projeto apresentado em 1997 que institui o Sistema de Mototáxi na Capital. À época, o serviço ocorria informalmente, e a população mobilizou-se para que a Câmara regulamentasse a atividade profissional.
Assinado pelo vereador Carlos Mesquita e pelo ex-vereador Sérgio Novais, o projeto foi aprovado na Câmara, mas foi vetado pelo ex-prefeito Juraci Magalhães. Com a negativa do Executivo, a sociedade pressionou os vereadores a derrubar o veto do prefeito. "As pessoas foram para a Praça do Ferreira reivindicar. Foi a lei mais polêmica. O veto foi derrubado na Câmara, teve tiro, teve bala, gente ferida", recorda Carlos Mesquita.
Lorena AlvesRepórter