Henrique Araújo
Editor-chefe do Núcleo de Cultura do O POVO
Posso estar exagerando, e tomara que esteja, mas a sensação é de que acordamos em Saigon e o ano é 1975. Que o dever cívico se aproxima perigosamente da embriaguez, disso ninguém duvida. No dia seguinte, sobrevém um tanto de ressaca. A novidade agora é que, junto com o trago ingrato, engolimos também a ficha. Que ficha? A de que a opinião dos amigos progressistas no microcosmo do nosso mundinho é uma coisa. O Brasil que vai às urnas e escolhe presidentes, deputados e senadores é outra.
O Brasil das urnas não é o das ruas. O Brasil de verdade é uma incógnita para a maioria dos brasileiros. O Brasil de verdade é uma fila de supermercado em que todos estão reclamando simultaneamente do calor e da escassez de caixas e tentando chegar em casa o mais rápido possível. O Brasil de verdade é uma caixa de comentários de dimensões continentais.
Como a ressaca é maior quando a gente não sabe o que está bebendo, estamos todos assim, abobalhados diante do que parece uma invasão dos visigodos ao império romano. Não há, entretanto, bárbaros. Pesquisadores falam em nova onda conservadora. Tenha o nome que tiver, o certo é que a gente se olha no espelho e vê o tamanho do estrago da noite anterior estampado no próprio rosto: Russomano, Tiririca, Feliciano e Heinze. A festa da democracia foi de arrombar. Embora quisesse ficar, Suplicy foi embora no melhor da balbúrdia.
Todos se lembram de 2013. A orgia cívica, a quebradeira, a violência e a promessa de uma reforma política. Os ventos de mudança açoitando as janelas da esperança. Da sacada do Alvorada, Dilma acena com uma constituinte, mas, como Marina faria depois com parte de seu programa de governo, imediatamente conserta: vejam bem... Há pouco mais de um ano, tínhamos essa certeza hoje ridícula de que o País havia superado algum trauma ancestral e aprendido uma lição muito dura: é preciso mudar. A lição era trote, e o trauma, uma cólica intestinal.
Como deixa claro a nova composição do Senado e da Câmara - e a recondução de Fernando Collor com mais da metade dos votos de Alagoas é uma realidade inconteste -, algo daquele viçoso espírito de transformação se perdeu no caminho. Afinal, como entender a expressiva votação de Jair Bolsonaro, eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro? Ou a vitória de Alckmin no primeiro turno em um estado que tem aprendido a gostar de cavoucar o volume morto?
Resmungar é para os fracos. Hoje, porém, somos isto: uns fracotes. Há quase nada a fazer, exceto rir de piadas na Internet, lembrar dos momentos hilários do último debate presidencial (Fidelix de olhos injetados cuspindo cobras e lagartos em um sereno Eduardo Jorge) e lamentar que as eleições, ao final, tenham se confundido com uma pegadinha. Imaginem: o eleitor entra no elevador e se depara com Moroni assombrando a cada quatro anos. Vai atravessando uma rua escura e Pezão salta de uma moita com o riso escandaloso de quem jamais encontrará uma resposta satisfatória para uma pergunta que lhe foi feita na televisão: onde está Amarildo?
No Ceará, teremos segundo turno entre dois candidatos que se complementam como queijo e goiabada. Em princípio, uma nova ida às urnas equivale a um tira-teima entre projetos políticos dessemelhantes. Aqui, porém, será uma amarga escolha entre a transferência ou a permanência do mando de um grupo A para um grupo B - há quatro meses, A e B eram assim, “AB”, duas letras juntinhas num matrimônio idílico. Hoje, cônjuges em conflito, disputam para decidir quem fica com o apartamento. E ainda há quem festeje essa barafunda.
Contra toda essa amargura, porque nem tudo é infelicidade, seguem algumas pequenas vitórias: a família Sarney foi defenestrada no Maranhão. Renato Roseno, do Psol cearense, é o novo inquilino da Assembleia Legislativa. Jean Wyllys, correligionário de Roseno, foi eleito deputado federal no Rio. Não é muito. É alguma coisa. Mas, se já há algo de que o Brasil precisa hoje é de uma razão para alegrar-se que não sejam as piadas tragicômicas do Tiririca. Então, vamos celebrar.